Carta n. 2

Certa vez, um senhor fofinho chamado Yi-Fu Tuan disse que "lugar" é um espaço que podemos atribuir algum valor, que tem um significado afetivo para nós, seres dotados do sopro da vida.
Sempre soube que a Geografia me faria maior no espaço em que habito, apesar de nenhum familiar meu enxergar a imensidão que eu alcanço com meus olhos e minha mente. Mesmo que eu não sinta mais vontade nenhuma de visitar minha cidade natal, lá tem um espaço que eu posso chamar de "lugar", que independente de visita, vai ter sempre uma parte minha lá, mesmo que oculta pelo tempo.
O chão era ladrilhado (que nem a música) e se estiver como na última vez que fui, continua da mesma forma... O asfalto chegou em boa parte ao seu redor, mas lá ainda não. Entre os altos e baixos da cidade, ela está lá, no alto, por onde consigo ver uma parte da cidade: várias casas, uma escola, a caixa d'água, a igreja e até o nascer do sol eu via. Quando eu era criança, nos anos 2000 e pouquinhos, corria no final da tarde com minha irmã e vizinhas, atrás de uma bola de leite, que em menos de 10 minutos estava lotada de espinhos pequenos. A gente torcia pra bola não furar, mas ela voltava vazando, que droga...
Era bola, boneca (que não podia sujar, mas sujei kk), bicicleta. E reunião na calçada. 
Quando faltava luz nas casas e nos postes, as luzes do céu se acendiam e a gente sentava em almofadas na beira da rua, olhando pro alto. E nossa imaginação ascendia... Vinham as histórias de quando a mãe e o pai eram crianças, as lendas urbanas e folclóricas da nossa cultura. E lá se iam horas, até a energia decidir voltar pr'aquele pedacinho do mundo, que eu achava que era tudo que existia. Mal sabia eu...
Eu cresci ali, perto do hospital, perto da escola, do cemitério e era tudo tão comum que chegava a ser monótono. O caminho de qualquer local que eu tivesse até o meu lugar, era automático. A vida já foi mais simples, os tombos de bicicleta não eram nada comparados aos que eu sofreria no futuro que eu nem imaginava que fosse viver longe dali. As risadas dos vizinhos pelos desastres que nós, as crianças, fazíamos brincando não seriam nada daqui a alguns anos, que fizeram questão de voar.
Um dia, sem lembrar quando exatamente foi, nós (eu, minha irmã e as vizinhas) brincamos pela última vez. Com o passar dos anos, a escola ficou mais longe, assim como os caminhos do coração foram enlarguecendo e eu vivia em companhia da solidão. A calçada já não tinha tanto de crianças, mas sim adolescentes e foram aparecendo novos colegas de escola, os ficantes, os namorados... Nada de chinelo de dedo no fim da tarde, mas tinha salto alto depois das 1h da manhã em datas comemorativas da cidade. Dentro de mim, tanta coisa não fazia sentido mais, que a única coisa que eu tinha certeza de fazer, era andar de volta pro lugar de sempre: a Rua 05 do Conjunto Padre Inácio.
Um dia, foi essa rua que viu eu dizendo pra minha mãe que eu não aguentava mais viver ali. Que eu ia embora. E eu fui, mas deixei uma parte minha lá, talvez a parte mais inocente da minha vida, que eu nunca mais vou ter de volta.
Tuan estava certo e sempre vai estar, até pra quem ousa dizer que não entende de Geografia, mas com certeza tem um lugar que no coração, chama de seu. Mesmo que seja uma rua.

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